O crescimento dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes tem sido alarmante no país. Em Mato Grosso, Sorriso ocupa a primeira posição no ranking com a maior taxa de estupro de vulnerável do Brasil, com 113,9 casos a cada 100 mil habitantes.
A situação se torna ainda mais preocupante quando 63% dos casos são praticados por familiares, conforme levantamento do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado este ano.
De acordo com a delegada de Polícia Civil, Jannira Laranjeira, especialista em combate à violência contra a mulher, esses dados são um reflexo da nossa sociedade, um “retrato da cultura patriarcal, do machismo, que objetifica a mulher, a menina, a criança, para a satisfação da lascívia em detrimento da infância”.
Jannira falou sobre o fato de que tais situações ocorrem dentro de casa, sendo praticadas por pessoas que estão “acima de qualquer suspeita”. Para isso, a delegada defende a necessidade em modificar e debater a estrutura de sociedade de “família perfeita aos olhos dos outros”, que não denuncia por medo dos olhares reprovadores da sociedade. “A gente precisa falar mais, quebrar o silêncio, ensinar as nossas meninas a gritar, a pedir socorro, a fazer escândalo. Não é mimimi”, disparou.
“O abusador sexual é o pai de família, o empresário, o pastor, o vizinho, o amigo do pai, da mãe é o padrinho, é o avô, o padrasto, é o primo, é o irmão… são inúmeras pessoas que estão acima de qualquer suspeita. Então, nós precisamos dar ouvido a fala da criança, da mulher, da menina”, declarou a delegada.
Jannira destacou ainda sobre a importância de respeitar as crianças quando verbalizam não gostar de determinada pessoa – não querer abraçar ou beijar – mesmo sendo alguém de convívio familiar. Para a delegada, é de suma importância dar credibilidade às vítimas, acreditar na palavra delas e proporcionar um lugar seguro para que a criança se sinta amparada neste momento de vulnerabilidade.
Crianças de 0 a 13 anos são as mais afetadas
Segundo o Anuário de Segurança Pública, o perfil das vítimas, majoritariamente são crianças e pré-adolescentes de 0 a 13 anos.
“As crianças de 0 a 4 anos representaram 11,1% das vítimas, as de 5 a 9 anos 18%, e aquelas entre 10 e 13 anos somaram 32,5%. Ou seja, vítimas com idade entre 0 e 13 anos constituem 61,6% dos estupros no Brasil. Se considerarmos vítimas de até 17 anos, “menores de idade”, temos 77,6% de todos os registros”, diz trecho do anuário.
Entretanto, o levantamento destaca que os dados são baseados em casos que foram devidamente registrados, por meio de boletins de ocorrência, ou seja, os números são ainda maiores se levarmos em conta as subnotificações. Além disso, destaca-se que a classificação de autoridades policiais quanto a vítimas a partir dos 14 anos de que “não são necessariamente casos de estupro de vulnerável”.
“Infelizmente, é comum ouvir relatos de vítimas que se dirigem à delegacia de polícia para denunciar uma violência sexual e são desincentivadas pelos policiais a prestarem queixa. Os mitos que rondam os crimes de estupro projetam no imaginário social a ideia de que mulheres inventam que foram estupradas para se vingar, que provocaram o próprio estupro em função de seu comportamento ou de suas vestes, ou mesmo para realizar um aborto legal. Estas percepções tendem a minimizar e justificar a gravidade da violência experimentada, associando a responsabilização à vítima e não ao agressor”, destaca a pesquisa.
Quanto a isso, Jannira declara que, desde os primórdios, as mulheres tiveram suas vozes silenciadas e que falar sobre determinadas situações, em que os direitos são violados, ainda é muito difícil.
“Para essa menina ter esse direito de falar, de pedir socorro, muitas vezes, está fora de cogitação dentro da própria rede de proteção. Por quê? Porque dentro do núcleo familiar, da polícia, na assistência social, ou lá na Saúde, por onde ela passar, eles vão perguntar: “Mas você vivenciou tantos anos, 5 anos, 10 anos, e não contou nada para ninguém?” Então já começa a colocar a fala da vítima em xeque, a duvidar dela, dizer que a vítima gostava. Começa a desqualificar amenina: “Ela é assanhada, é pra frente”, explicou.
Cuiabá e outros dois municípios também lideram taxas
O estado do Mato Grosso, líder em estupros com a cidade de Sorriso, tem ainda outros três municípios entre as 50 cidades – com mais de 100 mil habitantes – com as taxas mais elevadas de estupros, sendo elas: Sinop, na 33ª posição, com a taxa de 69,8; Cuiabá, na 42ª Posição, com 64,5; e Tangará da Serra na posição 45ª, com a taxa de 62,5 casos de estupro a cada 100 mil habitantes.
Para a delegada, os quatro municípios possuem dois aspectos em comum, que valem ser destacados. O primeiro deles é a presença do agronegócio, que leva centenas de pessoas de outros estados, ou até países da América do Sul, a se deslocarem a essas cidades mato-grossenses, de acordo com Jannira, em busca de trabalho e/ou uma “nova oportunidade para criminosos, condenados ou não, recomeçarem a vida, permanecendo à margem da sociedade e dando continuidade aos crimes”.
O segundo ponto em comum entre as cidades é a atuação de organizações criminosas, fazendo com que a população conviva com um quadro acentuado de disputas entre facções por rotas para o tráfico de drogas e territórios.
“Além disso, quando falamos de uma sociedade que está em uma comunidade, um bairro, tomada por uma facção criminosa, é uma outra situação, também real, que potencializa o aumento desses tipos de delitos.
Por quê? Porque ali também tende a imperar o silêncio. Ali as pessoas não podem denunciar violência doméstica, não podem denunciar pequenos furtos, tem regras paralelas até para que esses delitos não aconteçam, ou que eles sejam silenciados, eles mesmos aplicam as reprimendas estabelecidas dentro de uma facção, justamente para dificultar o acesso. Então toda a sociedade é treinada, é imposta a ela, que não pode pedir o apoio da polícia”, explicou a delegada.
Segundo Jannira, se faz necessário a educação da sociedade desde cedo, além da implementação de políticas públicas. “Ter uma sociedade esclarecida, consciente dos seus direitos e sabedora dos canais estruturados para a denúncia e que vai realmente preservá-la”, defendeu.
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