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Revista diz que em Sorriso existe apartheid social e mostra desigualdades

  • O Brasil é o maior produtor de soja do mundo, e Sorriso, em Mato Grosso, o líder nacional nessa produção; em dez anos, o PIB per capita no município saltou de R$ 27 mil para R$ 132 mil.
  • De um dos lados da rodovia que corta a cidade, a pujança se mostra na forma de condomínios de luxo; do outro lado, vivem os trabalhadores da soja e pequenos produtores em moradias precárias e alta vulnerabilidade social.
  • Agricultores familiares lutam para continuar produzindo em meio a disputas de terra e nuvens de agrotóxicos, que destroem plantações, arruínam a produção de mel e elevam os casos de câncer – em Sorriso, a incidência de casos é o dobro da média do estado.
  • Em Sorriso, vidas também se perdem para o crime organizado – o município tem a sexta maior taxa de assassinatos do país – e para o próprio agronegócio, com dezenas de mortes por soterramento nos silos de soja.

Vista de cima, a cidade que se orgulha do título de Capital Nacional do Agronegócio evidencia um abrupto recorte social e econômico. A BR-163 funciona como se fosse uma fronteira que divide duas realidades opostas, tal qual o muro que separa Israel e Palestina.

𝐀𝐧𝐭𝐞𝐬 𝐝𝐞 𝐝𝐞𝐢𝐱𝐚𝐫 𝐬𝐮𝐚 𝐎𝐏𝐈𝐍𝐈𝐀̃𝐎 𝐨𝐮 𝐂𝐑𝐈́𝐓𝐈𝐂𝐀, 𝐟𝐚𝐜̧𝐚 𝐬𝐞𝐮 𝐏𝐈𝐗, 𝐜𝐨𝐦 𝐨 𝐯𝐚𝐥𝐨𝐫 𝐪𝐮𝐞 𝐩𝐮𝐝𝐞𝐫, 𝐞 𝐚𝐩𝐨𝐢𝐞 𝐨 𝐉𝐊𝐍𝐎𝐓𝐈𝐂𝐈𝐀𝐒.𝐂𝐎𝐌 𝐚 𝐜𝐨𝐧𝐭𝐢𝐧𝐮𝐚𝐫 𝐭𝐞 𝐝𝐞𝐢𝐱𝐚𝐧𝐝𝐨 𝐢𝐧𝐟𝐨𝐫𝐦𝐚𝐝𝐨. 𝐅𝐚𝐜̧𝐚 𝐮𝐦𝐚 𝐃𝐨𝐚𝐜̧𝐚̃𝐨 𝐩𝐞𝐥𝐚 𝐂𝐇𝐀𝐕𝐄 𝐏𝐈𝐗: 𝟐𝟖.𝟏𝟓𝟏.𝟐𝟗𝟕/𝟎𝟎𝟎𝟏-𝟎𝟓 𝐑𝐀𝐙𝐀̃𝐎 𝐒𝐎𝐂𝐈𝐀𝐋: 𝐌𝐈𝐃𝐀𝐒 𝐏𝐔𝐁𝐋𝐈𝐂𝐈𝐃𝐀𝐃𝐄 𝐄 𝐌𝐀𝐑𝐊𝐄𝐓𝐈𝐍𝐆

Na margem oeste, uma economia pujante enfileira lojas de marcas de luxo, ocupa as ruas com caminhonetes que custam centenas de milhares de reais e erguem mais e mais casas e condomínios de alto padrão.

A leste da rodovia, carros fabricados há décadas circulam por ruas que foram asfaltadas pela primeira vez há menos de cinco anos, numa paisagem que se compõe de construções simples de tijolos à mostra e placas de excursões para o Maranhão – que levam e trazem de lá os trabalhadores anônimos que servem até a própria vida na cadeia de produção do ouro do Cerrado, a soja. https://www.youtube.com/embed/uVFDePuGlEY?si=SGByToW9eJmHkzr_

A geração de riqueza e de desigualdade no Centro-Oeste são faces do mesmo projeto de desenvolvimento colocado em prática a partir da década de 1970. Baseado numa lógica de ocupação de terras da Amazônia e Cerrado por colonos oriundos do Sul do país, este projeto foi turbinado pela globalização das commodities alimentares e consolidou a vocação brasileira de fazendão do mundo – e também sua incapacidade de alimentar a própria população.

“O projeto de colonização foi uma iniciativa do Governo Federal [nos anos de ditadura militar], que permitiu que empresas comprassem grandes quantidades de terra e organizassem comercialmente e estrategicamente a venda dessas terras”, contextualiza Vitale Joanoni Neto, professor pesquisador da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

A estratégia, em suma, foi criar grandes lotes rurais conectados a lotes urbanos. Assim, a empresa colonizadora tornava seu produto mais atraente com a promessa aos futuros fazendeiros do Cerrado de que criaria cidades planejadas. Era verdade: em Sorriso, que a colonizadora urbanizou, floresceram bairros que oferecem alta qualidade de vida. O problema ficou para quem não coube neste projeto de desenvolvimento. Os trabalhadores do agro chegaram depois, ficaram sem terras, sem casas e apartados das oportunidades de progresso.

Brasil, o país da soja

Hoje, o Brasil ocupa a liderança no ranking global de produção de soja, um total de 319,9 milhões de toneladas na safra de 2022/23 – Sorriso é o município que mais colaborou para isso, com 2,1 milhões de toneladas. De toda a soja que o país exporta, 75% vai para a China, onde serve principalmente como ração para porcos, proteína animal mais consumida pelos chineses.

Os 167 bilhões de dólares que entram na balança comercial brasileira para comprar tanta soja são fundamentais para a nossa economia: colaboram para o crescimento do PIB e para a estabilização do real diante do dólar.

Na perspectiva local, o dinheiro do agronegócio impôs uma revolução para os municípios do centro-norte do Mato Grosso. O PIB per capita de Sorriso, por exemplo, saltou de R$ 27.583,96 em 2010 para R$ 98.309,14 em 2020, e em 2021 chegou a R$ 131.899,11 – em um período no qual a população da cidade quase dobrou, de 66.521 para 110.635 no último censo, em 2022.

Em uma região do Brasil onde a riqueza vem do que a terra dá, quem não tem terra faz o quê? Essa é a pergunta que um enorme contingente de moradores de Sorriso se faz – de acordo com dados do Cadastro Único, cerca de 30% da população vive em situação de vulnerabilidade social. A região, de acordo com Atlas do Espaço Rural Brasileiro, é a de maior concentração de terras de todo o país. E quem luta por terra vive na pele uma outra face do apartheid social imposto pelo agro.

Sorriso, em Mato Grosso, é o maior produtor de soja do Brasil. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Assentamento Alvorecer: “Querem encurralar a gente”

Há mais de duas décadas, Milton e Eva Batista vivem de forma itinerante pelos municípios do centro-norte de Mato Grosso. A casa recém-construída dentro do Assentamento Alvorecer é a quinta moradia da família no período – todas as anteriores foram demolidas por caminhões e tratores em ações de reintegração de posse.

“Essa é a primeira casinha de madeira que eu construí. Foi sozinho, Deus e eu”, conta Milton, que é pai de seis filhos, três deles criados dentro de assentamentos de ocupação de terra. Antes dessa construção, ele e a família viveram anos debaixo de lona.

O casal, ambos de 65 anos, está desde dezembro de 2022 no Assentamento Alvorecer, quando recebeu o convite do líder comunitário Gerson Sousa Santana para voltar à zona rural. Antes, passaram pelo que chamam de “sofrimento” de morar na periferia urbana de Sorriso. “A gente foi pra cidade vestindo só a roupa do corpo”, se emociona Milton. Para trás, havia deixado três anos de trabalho investido numa ocupação que foi destruída e destinada ao cultivo de soja.

Milton e Eva Batista dentro da casa de madeira construída pelo próprio Milton no Assentamento Alvorecer, em Sorriso (MT). Foto: Fellipe Abreu/Mongabay
Vista aérea do Assentamento Alvorecer, em Sorriso (MT). Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Além da terra na qual puderam se abrigar no Assentamento Alvorecer, eles encontraram também histórias semelhantes. A primeira ocupação, em 2014, foi totalmente revertida em menos de 7 meses. Após o despejo, se organizaram como associação e ocuparam de forma definitiva um território de 180 hectares pertencente à União – onde, à época, viviam 113 famílias.

Uma das mais influentes famílias sojeiras da cidade reivindica para si a posse dessas terras, e a pressão sobre o Judiciário surtiu efeito: em 2019, uma liminar reduziu em mais de 90% o tamanho do assentamento. “Nos disseram que queriam encurralar a gente no chiqueiro”, recorda Gerson, presidente da associação.

Os moradores relatam uma ação de despejo violentíssima. A começar por uma ilegalidade: Gerson afirma que nem ele, nem o advogado constituído pelo assentamento receberam notificação judicial. Tratores e helicópteros chegaram de surpresa e deram poucos minutos para que os assentados juntassem seus poucos pertences e se amontoassem no espaço de 16,9 hectares definidos pela decisão do Judiciário. A terra onde eles viviam e plantavam hoje cultiva apenas soja e milho para uma família.

A lógica do apartheid foi reproduzida no campo. No lugar do muro, os fazendeiros abriram uma valeta de 2 metros de altura entre os dois territórios – um buraco intransponível onde já caíram e morreram animais que ajudam no sustento das atuais 80 famílias que vivem no assentamento. Na Justiça, a associação pleiteia o seguinte acordo: 5 hectares para cada unidade familiar, com reserva nativa inclusa. “O pedido é de moradia digna e terra para trabalhar, só isso”, resume Gerson.

Gerson Sousa Santana, líder comunitário do Assentamento Alvorecer, posa ao lado do valão aberto pela fazenda vizinha. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Assentamento Jonas Pinheiro: “O agro quer pegar de volta”

O Assentamento Alvorecer é vizinho do Assentamento Jonas Pinheiros – do qual, inclusive, os moradores dependem para o abastecimento de água e energia elétrica. Mais bem estruturado, o Jonas Pinheiro está em fase muito mais avançada de regularização fundiária, ainda que siga enfrentando questionamentos legais.

O assentamento foi regularizado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em 1999, ano em que as primeiras famílias se instalaram nos 7.300 hectares que compõem o projeto. O casal Marcio Manoel da Silva e Maria Boaventura de Sousa Silva (conhecida como Sula) chegou em 2002 e desde então sobrevive da agricultura familiar: “Tudo o que a gente sabe fazer é produzir alimentos”, afirma Marcio. Eles, assim como as mais de 400 famílias assentadas, correm também risco de despejo.

Em 2021, a Justiça anulou o processo de desapropriação de toda área. Um processo movido pela família que foi proprietária da fazenda reivindica reaver a terra, devido a falhas no processo de regularização por parte do Incra. A ameaça de despejo gerou reações diversas entre os moradores: alguns desistiram de vez da viver da terra e houve até quem passou mal. “Teve gente que desmaiou e foi parar no hospital”, relata Sula, que é presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Rurais do Vale do Celeste (Coopercel).

Marcio Manoel da Silva e Maria Boaventura de Sousa Silva com sua filha caçula em sua casa no Assentamento Jonas Pinheiro, em Sorriso (MT). Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

“Quando viemos para cá, ninguém dava nada por essa terra. Era considerada quase improdutiva”, recorda Marcio. “Agora que provamos que dá pra produzir aqui, que a terra tem valor, o agronegócio quer pegar de volta”. A produção no Jonas Pinheiro se mostrou especialmente profícua durante a pandemia de covid-19: os agricultores receberam da Prefeitura – por tempo determinado – um bom kit de maquinários e tratores e responderam com safra recorde de hortifrutis e hortaliças, que foram distribuídos aos moradores da cidade.

O anúncio do Plano Safra, com foco em agricultura familiar, em meados de 2023 trouxe aos produtores a expectativa de levantar recursos para a compra de novos equipamentos e maquinários e, assim, repetir de forma sustentada o bom desempenho dos anos da pandemia. E então, novo balde de água fria: o assentamento teve suas solicitações negadas devido a um embargo ambiental. Isso porque a área destinada para reserva ambiental coletiva de todo o Jonas Pinheiro está invadida.

As invasões ao trecho definido como reserva ambiental ocorrem desde o início do Projeto de Assentamento. Começou com alguns assentados em busca de hectares a mais para plantar. Depois de duas décadas, não há praticamente mais vegetação nativa e o perfil de invasores se transformou: o espaço está quase todo ocupado por plantações de soja e por pasto tomado de gado branco.

Para Sula e Marcio, se trata de mais uma forma do agronegócio estrangular o crescimento da agricultura familiar. Um ciclo no qual, sem recursos, os produtores têm baixa produtividade e acabam por desistir da lida. E muitos arrendam suas terras dentro do próprio assentamento exatamente para que laranjas entrem na política interna das associações e convençam cada vez mais produtores a atenderem aos interesses dos grandes latifúndios: plantar mais soja.

Moradora de bairro pobre de Sorriso mostra a casa que sofre com as enchentes e com problemas de falta de saneamento básico. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Agrotóxicos: doenças em humanos e extermínio entre animais

A invasão da soja dentro do Projeto de Assentamento Jonas Pinheiro traz novos problemas. Os relatos são vários de que aviões voam baixo sobre os lotes arrendados despejando agrotóxicos sobre a terra. No Assentamento Alvorecer, os produtores descrevem cenas parecidas. “No tempo da plantação da soja, eles vêm com o avião para passar veneno, mas eles não abrem só na parte deles, eles jogam veneno nas nossas terras. Faz uma chuva de veneno e destrói as nossas frutas”, conta Gerson. “Minha mãe passou mal por causa do agrotóxico, e tive que tirar ela daqui e pagar um aluguel na cidade”, conclui.

As mais recentes evidências científicas dão razão a Gerson. Publicado em 2023, o documento “Ambiente, saúde e agrotóxicos desafios e perspectivas na defesa da saúde humana, ambiental e do(a) trabalhador(a)”, produzido por pesquisadores da Universidade Federal do Mato Grosso, consolida dados que relacionam uso de agrotóxicos e incidência de câncer no estado entre 2001 e 2016.

Neste espaço de 15 anos, a incidência média de casos de câncer em Mato Grosso cresceu 19,45%. Mas o que chama mais atenção é que o crescimento de notificações foi acentuado nos municípios do centro-norte mato-grossense, entre eles Sorriso – cujo consumo de agrotóxicos é destacado como o maior do estado, com mais de 2 milhões de litros apenas no ano base de 2019. Enquanto a incidência média de câncer no estado é de 166,97 casos por 100 mil habitantes, na capital do agronegócio é de 304,35 casos por 100 mil habitantes.

Oridio Queiroz, apicultor em Sorriso (MT). Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

O documento conclui que há “forte correlação” entre consumo de agrotóxicos e casos de câncer e acrescenta “correlação positiva com as incidências de intoxicações agudas, mortes por intoxicações, cânceres infantojuvenis, malformações fetais, abortos e suicídios”.

O uso indiscriminado de pesticidas causa efeito ainda mais devastador entre as maiores polinizadoras do reino animal. O produtor Zauri José Biavatti, apelidado de Bispo, administra há 19 anos suas terras, localizadas entre o PA Jonas Pinheiro e uma das maiores fazendas de soja à margem da BR-163. Ele também observa que a frequência de voos para pulverização de agrotóxicos aumenta a cada ano. Assim como a taxa de letalidade de suas abelhas.

“Sempre morreu abelha, mas a média era de duas colmeias por ano, no máximo três. De 2020 para cá subiu muito e agora, em 2023, de 19 colmeias eu perdi 15”, relata Bispo. Não é um caso isolado.

A mais de 30 quilômetros de distância, o agricultor Oridio Queiroz testemunhou um extermínio dentro de sua propriedade. “Você não pode tirar todo o mel de uma vez, então eu tinha colhido o mel só de três caixas – e estava tudo bem”, conta. “Dois dias depois um amigo me ligou e disse que eu precisava ver minhas abelhas. Quando cheguei aqui, eu fiquei triste demais da vida. Não tinha mais abelha, elas estavam todas mortas”. Seu Queiroz perdeu cerca de 250 quilos de mel – o que representa, em termos financeiros, cerca de R$ 12 mil – e mais de 10 anos de criação de colmeias.

Diversas perícias em distintos pontos do município de Sorriso identificaram que a causa mortis das abelhas foi o uso excessivo de agrotóxicos. O caso mais emblemático foi a condenação de um fazendeiro produtor de algodão a pagar uma multa de R$ 225 mil, responsável pelo extermínio de mais de 100 milhões de abelhas entre Sorriso, Sinop e Ipiranga do Norte. As investigações feitas pelo Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso (Indea) constataram a presença do princípio ativo fipronil.

À reportagem, produtores denunciaram o uso ilegal de pesticidas contrabandeados do Paraguai, sem registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Zauri Biavatti, conhecido como Bispo, produtor rural e apicultor na zona rural de Sorriso. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Mercado de luxo em expansão

No núcleo urbano de Sorriso, há bairros que não devem à paisagem de cidades ricas dos Estados Unidos. A pujança econômica tem símbolos evidentes nas ruas, o mais proeminente deles é a multiplicação de pick-ups e SUVs. As caminhonetes compõem mais de 10% da frota total de veículos da cidade, em especial as de grande porte, como as da linha RAM, que custam a partir de R$ 240 mil. Apenas em 2023 foram registrados mais de 12 mil emplacamentos de veículos desta categoria no município.

O mercado imobiliário também vive seu boom em Sorriso. Desde 2020, o preço médio do metro quadrado subiu 80% no município, hoje estimado em R$ 2772,35 – em São Paulo, cidade mais rica do país, o metro quadrado médio fechou 2023 em R$ 7.153, segundo o Relatório de Compra e Venda do Quinto Andar. Nos condomínios de alto padrão de Sorriso, como o Cidade Jardim e o Green Park, o valor das mansões subiu até 140% nos últimos quatro anos.

A inflação para os mais ricos – que chegam a pagar cerca de R$ 1 mil em peças de roupas nas lojas de luxo da Avenida João Brescansin – alcança também quem tem menores rendimentos. Na parte oeste da cidade, casas de padrão classe média (sala, cozinha, banheiro, lavabo, dois quartos e garagem para dois carros) podem custar mais de R$ 6 mil de aluguel. Na parte leste, a mais pobre, o aluguel de casas simples de três cômodos (sala/cozinha, um quarto e um banheiro) sai quase sempre por mais de R$ 2 mil.

Seu Milton e Dona Eva, no período entre o despejo e o reassentamento no Alvorecer, moraram meses no bairro de Nova Fraternidade, na periferia da cidade. Eles dividiam uma casa de quatro cômodos com outra família. Os R$ 1.500 pagos no aluguel de metade do imóvel comprometiam quase integralmente a renda familiar. “Tinha dia que eu trabalhava de manhã pra ter dinheiro para jantar à noite. Às vezes nem isso, e dependíamos da ajuda das pessoas”, se emociona Milton.

“A gente precisa plantar porque está tudo caro”, reclama Eva. Na terrinha que o casal mantém dentro do assentamento, ela mostra as plantações de mandioca, cana, melancia, laranja, banana, abacate, quiabo e maracujá. “É tudo para consumo nosso. A gente planta com nosso suor mesmo e, aí, não precisa comprar”.

Uma preocupação que se justifica nas gôndolas dos mercados: o preço da cesta básica em Mato Grosso é um dos cinco mais altos do país; em Sorriso, o valor é maior que a média do estado.

Risco de morte aos trabalhadores do agro

Quem não tem acesso à terra precisa trabalhar e, evidentemente, as vagas que se abrem são quase todas relacionadas ao agronegócio. Na média nacional, o rendimento médio do trabalhador do agro é R$ 2.381,00 (dados de dezembro de 2023 do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – CEPEA Esalq/USP), cerca de 15% inferior ao rendimento médio do trabalhador de serviços.

Pressionados ao mesmo tempo pelo elevado custo de vida da cidade e por salários insuficientes, trabalhadores se submetem a empregos com carga horária elevada e condições de segurança insuficientes. Uma equação que muitas vezes resulta em tragédia.

O trabalho “Agronegócio e acidentes de trabalho letais em armazéns graneleiros do Mato Grosso”, realizado pelos pesquisadores Luciano Bomfim e Jacob Binsztok, da Universidade Federal Fluminense, agrupou informações de todo o país entre os anos de 2019 e 2021. A pesquisa constatou que as mortes estão concentradas no estado de Mato Grosso: foram 17 óbitos dos 37 registrados no Brasil. Revelou também o não cumprimento das normas de segurança como a principal causa das mortes – em 70% dos óbitos, os funcionários não faziam uso dos equipamentos de segurança necessários para a função.

O tipo de acidente predominante é o soterramento: foram 28 mortes de trabalhadores afogados a seco dentro de silos carregados de grãos – os demais tipos foram desabamento (3), queda (3) e inalação de gases (3). Foi desse modo, asfixiado em um silo de soja, que Francisco Neves da Silva perdeu a vida aos 36 anos, em maio de 2021 – um acidente que matou mais dois colegas dele: Francisco Carvalho dos Santos, de 32 anos, e Francisco das Chagas Abreu, de 21 anos.

Beatriz Bandeira mostra a foto do seu falecido marido, Francisco, que foi soterrado em um silo de soja. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay
Um dos muitos silos de grãos nos arredores da cidade de Sorriso. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Assim como milhares de trabalhadores do agronegócio em Sorriso, Francisco Neves era migrante maranhense. Desde jovem empregava os músculos na lida do armazenamento de grãos, de onde obtinha renda para se sustentar e para mandar algum valor para a mãe, no Maranhão. Casou-se com Beatriz Bandeira, cabeleireira, com quem mantinha há mais de dez anos uma família, composta ainda de mais três filhos dela.

Beatriz acompanhou in loco parte do trabalho de resgate do Corpo de Bombeiros, que durou mais de 10 horas. No fim daquela tarde, ela recebeu diversas ligações de um amigo do casal, perguntando por notícias do Rap – apelido de Francisco Neves. A insistência chamou a atenção, e Beatriz exigiu saber o que houve. E então recebeu a notícia: três homens estavam soterrados na fazenda onde seu marido trabalhava, em Nova Ubiratã, município vizinho, a aproximadamente 30 km de Sorriso.

“Peguei minhas coisas e fui direto pra lá. Toda vez que eu ligava pro meu marido e ele não atendia, tinha certeza de que ele estava envolvido”, conta. Às 3h15 daquela madrugada, o primeiro corpo foi retirado – o de Francisco Carvalho. Na sequência, um novo corpo aparecia. “Quando os bombeiros levantaram a maca lá no alto, mesmo de longe eu reconheci. Eu reconheci meu esposo pela bota dele. Quando desceram ele, eu e o meu cunhado chegamos perto, e a gente viu que ele tinha partido”, se emociona.

A terceira vítima, Francisco das Chagas, foi resgatado do silo com vida. Enquanto seus colegas foram soterrados por toneladas de soja, o corpo dele escorregou para uma área onde a entrada dos grãos foi bloqueada. Sem vaga na rede pública de saúde na cidade, ele foi levado ao Hospital Regional de Sinop, onde morreria três dias depois – óbito por envenenamento, decorrente das mais de 10 horas em que inalou o ar preso entre os grãos.

À época, o Sargento BM Moraes, do Corpo de Bombeiros, disse ao site MT Notícias: “Infelizmente nenhum dos trabalhadores estavam usando equipamento de segurança. Então foi uma negligência e será apurado posteriormente pelos órgãos competentes”. Até agora, não houve condenações.

Templo da Assembleia de Deus no Assentamento Alvoorecer, em Sorriso. Foto: Fellipe Abreu/Mongabay

Violência urbana explode: crime organizado coopta os jovens

Beatriz viveu duas tragédias que simbolizam as mazelas sofridas pela população de Sorriso que é apartada da riqueza promovida pelo agro. Além de perder seu companheiro, engolido pela soja, perdeu também seus filhos para o crime: o mais velho foi executado com tiro enquanto andava de moto e o mais novo, seis meses depois, sequestrado por bandidos encapuzados e fortemente armados dentro de casa – o jovem está desaparecido há quatro anos.

São crimes como esses que engordam as estatísticas de Sorriso. O ranking elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023 coloca a cidade como a sexta maior taxa de assassinatos do país (70,5 casos por 100 mil habitantes) – é a primeira da lista fora da região Nordeste e a única da região Centro-Oeste a figurar na lista das 50 mais violentas. O índice de Sorriso é três vezes superior à média nacional (23,4 homicídios por 100 mil pessoas).

A onda de violência começou a se formar em 2013, mas tomou impulso nos últimos dois anos, de acordo com Naldson Ramos, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e Cidadania da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Pouco mais de dez anos atrás, a facção criminosa paulista PCC começou a se posicionar em pontos estratégicos do Mato Grosso para tentar controlar rotas do tráfico de drogas da Bolívia para o Brasil. Durante muito tempo, o controle territorial do crime no estado esteve com a facção fluminense Comando Vermelho (CV).

A situação ficou especialmente crítica em 2022. Um racha interno do CV em Sorriso resultou no nascimento de uma nova facção, composta exclusivamente de criminosos da região. O grupo dissidente identificado como Tropa Castelar formou aliança com o PCC, que entrou pela primeira vez na cidade. A disputa por pontos de venda, domínio territorial e cooptação de agentes das forças de segurança deflagrou uma guerra que mata indefinidamente – integrantes ou não das facções.

Naldson Ramos, que estuda os dados de violência da cidade, afirma que é um erro a avaliação de que se trata apenas de “bandido matando bandido”, como foi dito pelo governador do estado, Mauro Mendes (União Brasil). Ao colocar uma lupa sobre os números de homicídios, ele identifica também crescimento de mortes que decorrem de violência policial e de conflitos corriqueiros entre homens armados.

“Há um mercado consumidor de drogas com muito dinheiro em Sorriso. Temos registros de que as festas dos jovens ricos são regadas a álcool com cocaína, skank e anfetaminas”, informa Nadson. “Então vira um território muito rentável para os traficantes e aumenta o risco de brigas que resultam em uso de arma de fogo”.

O aumento da criminalidade é, talvez, o efeito colateral da desigualdade social e econômica que mais chegue aos olhos de quem se beneficia dela. A concentração de renda e a baixa remuneração da força de trabalho do cidadão médio compõem a tempestade perfeita para que as facções criminosas cooptem jovens para o mundo do crime.

brasil.mongabay.com

* Colaboraram nesta reportagem Fellipe Abreu e Camila Quaresma.

Imagem do banner: Paisagem de Sorriso (MT): acima, monocultura de soja; abaixo, os lotes de um projeto de produção agroflorestal. Foto: Fellipe Abreu

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